Relançado nos cinemas brasileiros, em nova versão restaurada em 4K, o clássico de David Lynch ⎯ morto em janeiro deste ano, aos 78 anos ⎯, continua a intrigar e maravilhar o público com sua narrativa não-linear na fronteira entre o sonho e a realidade.
Objeto de culto entre os cinéfilos, “Cidade dos Sonhos” foi eleito pela BBC Culture em 2016 como o melhor filme do século 21 em uma votação com mais de 170 críticos e personalidades do cinema, ficando à frente, por exemplo, de “Amor à Flor da Pele”, em 2º lugar, e “Sangue Negro”, em 3º.
Inicialmente, “Cidade dos Sonhos” foi pensado por Lynch para a televisão, no final dos anos 1990, como um spin-off de “Twin Peaks” (1990-1991) centrado em Audrey Horne, personagem de Sherilyn Fenn na série, também gravitando o mundo do cinema. O projeto acabou evoluindo para uma série independente, “Mulholland Drive” (nome da famosa estrada cheia de curvas em Santa Monica, Los Angeles), cujo episódio piloto é filmado por Lynch em 1999 com orçamento de US$ 8 milhões bancados pela rede ABC.
Só que os executivos da ABC detestaram o piloto e a série acaba cancelada pela emissora, até que a distribuidora e produtora francesa StudioCanal resolve investir no projeto, comprando o episódio dos americanos. Dois anos depois, Lynch, então, recria o material em forma de longa-metragem, usando o episódio piloto como base ⎯ equivalente a 3/4 do filme finalizado ⎯ e roda novas cenas, que integram a meia hora final, uma espécie de epílogo que contrapõe quase tudo que foi visto antes na história.
Até que, em maio de 2001, “Cidade dos Sonhos” estreia no Festival de Cannes com grande aclamação da crítica, mas perde a Palma de Ouro para “O Quarto do Filho”, de Nanni Moretti. Lynch, contudo, é reconhecido com o prêmio de Melhor Diretor e seu filme, renascido das cinzas, começa a figurar em diversas listas de melhores do ano pela crítica especializada. O cineasta recebe ainda sua terceira indicação ao Oscar de Melhor Direção, no ano seguinte.

Na trama, um acidente de carro na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa cadeia de personagens atormentados. Rita (Laura Harring) escapa da colisão, mas perde a memória e recebe a ajuda de Betty (Watts), uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade. Juntas, as duas descobrem fatos e segredos sobre a real identidade de Rita, em meio a uma teia de intrigas na capital do cinema americano.
ATENÇÃO: A partir daqui, o texto apresenta SPOILERS sobre o filme, alguns já conhecidos por muitos cinéfilos e fãs de cinema.
Assim como havia feito em “Veludo Azul” (1986), Lynch se apropria de elementos e da estética do cinema noir, com suas femme fatales, assassinos de aluguel e uma personagem desmemoriada, para ir ainda mais fundo, desta vez num intrincado mistério construído na fronteira entre o “real” e o imaginário.
Uma jovem ingênua e sonhadora, produtores de cinema que mais parecem mafiosos, e uma mulher misteriosa e sensual, são alguns dos arquétipos da mitologia hollywoodiana que reforçam a natureza de sonho narrado como “realidade” nos primeiros dois terços do filme.
Após uma série de peripécias, que incluem o primeiro teste de elenco de Betty ⎯ em que Lynch escancara bastidores (e egos) de Hollywood ⎯, as protagonistas vão parar no inesquecível Clube Silêncio (onde “no hay banda”), que serve de prenúncio para o espectador que tudo não passou de um sonho. Aos 115 minutos de projeção, Rita descobre a chave azul que irá abrir não só uma caixa misteriosa, mas a verdadeira “realidade” daquele universo.
Ou seja, tudo até ali foi fruto da imaginação inconsciente de Betty que, na verdade, se chama Diane Selwyn (também interpretada por Watts), amargurada e obcecada por Camilla Rhodes (Harring, de novo) ⎯ a verdadeira persona de Rita no “mundo real” ⎯ , agora uma atriz de sucesso que a trocou pelo diretor Adam (Justin Theroux). Abandonada por Camilla e relegada a papéis de figurante em filmes da ex-amante, Diane foi transmutada, no sonho, na encantadora Betty, uma atriz promissora rumo ao sucesso após um teste sensacional.
E o mistério do filme? Ele tem tudo a ver com a chave azul, e só irá fazer sentido na cabeça de Diane, em seus delírios, ao idealizar não só a si mesma ⎯ na pele de Betty, a jovem radiante que ela gostaria de ser, prestes a vencer em Hollywood ⎯, mas também Camilla, que de atriz bem sucedida passa à doce e perdida Rita. Só que a Hollywood solar dos sonhos se mostra uma fantasia, experimentada por muitos em busca de fama e fortuna em Los Angeles.
Na reimaginação de sua vida, Diane cria uma conspiração de produtores (parecidos com mafiosos) para escalar uma atriz, ao mesmo tempo em que recomeça sua história de amor com Camilla/Rita. Tudo como forma de lidar com sua culpa, simbolizada pela chave azul que já entrou para a história do cinema.

Naomi Watts em seu papel duplo: o cabelo de Betty, antes perfeitamente arrumado como o das estrelas da Hollywood clássica, dá lugar ao penteado bagunçado, olheiras e pele pálida de Diane no terceiro ato
Ao dedicar boa parte do filme ao onírico e às manifestações do inconsciente, Lynch mostra que os sonhos podem dominar ou influenciar a realidade, revelando nossos desejos, frustrações e medos mais profundos. Sonhos que são um espelho que atravessamos, entre o real e o imaginário, entre a vida consciente e o inconsciente, sem tempo cronológico definido. Inconsciente que revela, muitas vezes, mais sobre nós mesmos do que nossa própria vida racional.
Em “Cidade dos Sonhos”, a indissociação entre o plano real e o mundo inconsciente é a chave para uma experiência sensorial sem igual na sétima arte. Cabe a cada um interpretar da sua maneira as relações de causa e efeito, personagens que entram e saem de cena sem explicação, e a gangorra de emoções dos papéis duplos interpretados por Watts e Harring. Tudo embalado por um dos retratos mais críticos e irônicos do cinema norte-americano na ficção.
Passados 24 anos desde sua estreia mundial no Festival de Cannes, o cult de Lynch continuar a impressionar, com suas diferentes camadas, que vão da crítica mordaz à indústria do cinema, passando por sua trágica história de amor obsessivo, até um estudo sem igual da interpretação dos sonhos. A indissociação entre o plano real e o mundo inconsciente é a chave para uma experiência sensorial sem igual na sétima arte.
Cabe a cada um interpretar da sua maneira as relações de causa e efeito, personagens que entram e saem de cena sem explicação, e a gangorra de emoções dos papeis duplos interpretados por Watts e Harring. Tudo embalado por um dos retratos mais devastadores dos bastidores de Hollywood na ficção.
Às 2 horas e 22 minutos de duração: “Silêncio”. Fim
De volta aos cinemas brasileiros desde a última quinta-feira (17/4), “Cidade dos Sonhos” pode ser conferido agora na telona em toda a sua gloria, restaurado em 4K, processo que realça ainda mais a brilhante fotografia de Peter Deming e o som.
CURIOSIDADES:
- Uma das primeiras cenas do filme mostra uma manta vermelha sobre a cama, com um travesseiro embaixo, indício do caráter de sonho que vem a seguir.
- Segundo executivos da ABC que rejeitaram o episódio-piloto que deu origem ao filme, “Naomi Watts e Laura Harring eram muito velhas para estrela a série”. Eles acharam tudo muito lento e detestaram uma cena que mostra fezes de cachorro no chão.
- No filme, Betty fala para Rita: “prefiro ser uma grande atriz a ser estrela de cinema, mas às vezes se acaba sendo as duas coisas”. Um diálogo profético, já que Watts ⎯ até então uma desconhecida batendo cabeça em Hollywood (como sua personagem Diane), com papéis inexpressivos em produções B ⎯, acabaria se tornando uma estrela na vida real. Antes de estrelar o filme, ela chegou a pensar em abandonar a carreira e Los Angeles.

A atuação de Naomi Watt foi reconhecida por diversas associações de críticos e, anos depois, “Cidade dos Sonhos” seria eleito o melhor filme dos anos 2000 pela Cahiers du Cinéma
- Na primeira parte, uma atriz chamada Camilla Rhodes (Melissa George) é escalada por produtores, para desgosto do diretor interpretado por Justin Theroux. No terceiro ato, Camilla Rhodes é o nome da personagem de Laura Harring no campo da “realidade”, uma atriz bem sucedida que troca Diane (Watts) pelo seu diretor. A crítica de Diane à ex-amante é flagrante ao transformá-la, no sonho, em uma atriz imposta por “produtores do mal”.
- Compositor das trilhas icônicas de “Veludo Azul” e da série “Twin Peaks”, entre outros trabalhos de Lynch, Angelo Badalamenti (1937-2022) aparece como ator em “Cidade dos Sonhos”, no papel do produtor que cospe o capuccino numa reunião.
- Após perder a memória, Rita tem a ideia de seu nome ao ver um cartaz do clássico “Gilda”, com Rita Hayworth, na casa da tia de Betty. Já “Betty” surge para a atormentada Diane no terceiro ato, quando ela vê o crachá de uma garçonete com esse nome.
- O “cowboy sinistro” aparece numa sequência do terceiro ato, visto rapidamente na festa de noivado de Camilla.

“Imagine um livro que, quando publicado, faz muito sucesso, deixando seus leitores intrigados e com muitas dúvidas, mas sem conseguir respondê-las, pois seu autor faleceu antes da primeira edição ser vendida. É assim que vejo meu filme, como uma caixa cujo segredo está na chave de cada um, que irá abri-la e desvendá-la a seu modo”. David Lynch
- Um dos pontos altos da produção é a montagem de Mary Sweeney, ex-parceira de Lynch na vida real. Ela levou o Bafta de Melhor Edição pelo filme.
- Inspirados por “Cidade dos Sonhos”, Lynch e seu sócio Arnaud Frisch criaram, no final de 2011, uma casa noturna na Rua Montmartre, em Paris: o Club Silencio, complexo que inclui ainda sala de shows, restaurante, cinema e biblioteca.
Pesquisa e texto: Eduardo Lucena