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Adeus David Lynch, um dos gênios do cinema moderno

Adeus David Lynch, um dos gênios do cinema moderno
Artista multimídia avesso às convenções, David Lynch dirigiu 'Veludo Azul', 'Cidade dos Sonhos' e a série 'Twin Peaks', que entrou para a história da TV

Por Eduardo Lucena

O cineasta morreu em 16/1/2025, aos 78 anos, em decorrência de complicações causadas por um enfisema pulmonar. Casado quatro vezes, deixou duas filhas e dois filhos.

Início

Oriundo de uma família de agricultores itinerantes, David Keith Lynch nasceu em 20 de janeiro de 1946, em Missoula (Montana, EUA). Antes de ingressar no cinema, estudou pintura e até fez uma viagem pela Europa em busca de referências, até começar a dirigir seus primeiros curtas-metragens, em que mesclava técnicas de animação com suas pinturas.

Seu primeiro longa-metragem, “Eraserhead” (1977), demorou cerca de cinco anos para ficar pronto. Seu penoso processo de produção resultou inclusive no primeiro divórcio do diretor. Bizarro, original, surrealista, “Eraserhead” é um pesadelo em forma de drama familiar, acompanhando Henry Spencer (Jack Nance), que luta internamente para lidar com sua namorada e os gritos de seu filho, um bebê mutante.

No set de Eraserhead, David Lynch retoca a maquiagem da atriz Laurel Near

Entre os admiradores desse cult do cinema, estão Stanley Kubrick e Mel Brooks que, impressionado, produziria o filme seguinte do cineasta, “O Homem Elefante” (1980).

Filmado na Inglaterra, com bela fotografia em preto e branco influenciada pelo expressionismo alemão, o drama vitoriano foi reconhecido pela Academia de Hollywood com oito indicações ao Oscar, incluindo a primeira das três nomeações de Lynch a melhor direção.

A história real de John Merrick, cidadão inglês conhecido como “Homem Elefante” por causa das deformações em sua aparência causadas por uma doença congênita, rendeu ainda a Lynch uma indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado.

Maquiagem que fez história

John Hurt, antes e depois, em O Homem Elefante. Após os esforços mal sucedidos do próprio Lynch para recriar John Merrick, Christopher Tucker foi contratado para desenvolver a maquiagem protética
John Hurt, antes e depois, em O Homem Elefante. Após os esforços mal sucedidos do próprio Lynch para recriar a cabeça de John Merrick, Christopher Tucker foi contratado para desenvolver a maquiagem protética do filme (história contada no video mais abaixo)

No papel-título, o grande ator britânico John Hurt (1940-2017) teve de enfrentar sessões de aplicação de maquiagem que duravam de sete a oito horas por dia, e mais duas horas para remoção.

Considerado um marco na maquiagem protética para cinema, o trabalho de Christopher Tucker e equipe não pôde ser reconhecido pela Academia de Hollywood, já que ainda não havia a categoria de melhor maquiagem no Oscar.

A maquiagem e próteses usadas em “O Homem Elefante” foram criadas a partir do estudo do esqueleto e de moldes do corpo de Merrick que foram mantidos para pesquisa. A ausência dos maquiadores do filme na premiação do Oscar de 1981 levou à criação da categoria de melhor maquiagem, conquistada por “Um Lobisomem Americano em Londres” no ano seguinte.

O sucesso de público e crítica de “O Homem Elefante” levou Lynch a alçar voos maiores, como a superprodução de ficção-científica “Duna” (1984), adaptação do clássico de Frank Herbert que se tornou o maior fracasso de sua carreira e o afastaria de vez dos filmes de grande orçamento.

Volta por cima

Seu projeto seguinte, “Veludo Azul” (1986), thriller neo-noir que mistura investigação policial com perversão sexual, apresentou um retrato diferente das cidadezinhas americanas dos cartões postais. O filme valeu a Lynch sua segunda indicação ao Oscar de melhor direção e permanece até hoje um marco do cinema independente.

David Lynch dirige Isabella Rossellini, que foi sua parceira na vida real, em Veludo Azul. O filme marca a primeira de várias parcerias do cineasta com o compositor Angelo Badalamenti, criador das icônicas trilhas sonoras de Twin Peaks e Cidade dos Sonhos, entre outros trabalhos

Em 1990, Lynch revolucionou a televisão com a seminal série “Twin Peaks”, criada ao lado do roteirista Mark Frost. A trama de mistério em torno do assassinato de Laura Palmer explorou temas tabus e mostrou que era possível desenvolver um trabalho autoral na TV. A produção ganhou uma segunda temporada controversa, exibida entre 1990 e 1991, e uma terceira, aclamada pela crítica – “Twin Peaks: O Retorno” – lançada em 2017, com boa parte do elenco original.

Logo após “Twin Peaks” estrear na TV americana, em abril de 1990, Lynch apresentava no Festival de Cannes daquele ano “Coração Selvagem”. O filme homenageia o clássico “O Mágico de Oz” por meio da jornada bizarra de Sailor (Nicolas Cage) e Marilyn (Laura Dern), que deixam sua cidade para fugir das garras da diabólica mãe dela (papel de Diane Ladd, indicada ao Oscar de coadjuvante) e seus capangas.

Um dos pontos fortes de Lynch é como ele utiliza a caracterização dos personagens para contar uma história – do casal em fuga, passando pelos coadjuvantes, como a diabólica mãe da protagonista e o vilão Bobby Peru de Willem Dafoe – todos são interessantes e marcantes

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1990, sob vaias e aplausos, “Coração Selvagem” é um road movie esfuziante e violento que vem sendo reavaliado positivamente com o tempo.

Mestre do surrealismo

Lynch voltou a concorrer à Palma de Ouro com “Twin Peaks — Os Últimos Dias de Laura Palmer” (1992), filme derivado da série homônima. Incompreendido na época de seu lançamento, é mais um conto de horror psicológico sobre a perda da inocência, com ênfase na atmosfera surreal que é a marca do diretor.

O mergulho no universo (e sombras) do cinema noir continuaria em “Estrada Perdida” (1997), um dos trabalhos mais inventivos e radicais de Lynch, explorando o desejo e a questão da identidade. O filme aprofunda também as experiências do cineasta com o som, que acentuam o clima de inquietação e tensão constante.

De forma econômica e sutil, a maquiadora Debbie Zoller e a hair stylist Patricia Miller criaram o look perturbador do “Homem Misterioso” (papel de Robert Blake) em Estrada Perdida

Diferente de tudo que Lynch já havia feito, “Uma História Real” (1999) marcou seu retorno a uma narrativa mais tradicional, a partir da história singela de um idoso que parte em viagem dirigindo apenas seu minitrator cortador de grama. Talvez o filme mais sensível e despojado do diretor, rendeu ao veterano Richard Farnsworth uma indicação ao Oscar de melhor ator.

Os anos 2000 começaram em grande estilo com mais um projeto para TV: “Cidade dos Sonhos”, inicialmente criado como piloto para uma possível série de televisão. Só que a série foi cancelada pela rede ABC e Lynch, com o auxilio do Studio Canal francês, decidiu recriar o material como longa-metragem, adicionando e refilmando cenas.

O resultado foi o filme “Cidade dos Sonhos” (2001) como conhecemos, vencedor, em 2002, do prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, além de concorrer ao Oscar na mesma categoria. Com sua narrativa não-linear, o longa transita entre o plano real e o mundo inconsciente – a indissociação entre ambos é a chave para uma experiência sensorial sem igual na sétima arte.

Até então desconhecida, Naomi Watts (ao lado de Laura Harring) foi descoberta por Lynch e virou uma estrela com Cidade dos Sonhos. Ela voltaria a trabalhar com o diretor na terceira temporada de Twin Peaks, além de uma ponta em Império dos Sonhos

Objeto de culto entre os cinéfilos, “Cidade dos Sonhos” foi eleito melhor filme do século 21 por uma lista de críticos organizada pela BBC em 2016, ficando à frente, por exemplo, de “Amor à Flor da Pele” (em segundo lugar) e de “Sangue Negro” (em terceiro).

Curiosidade: Inspirados pelo filme, Lynch e seu sócio Arnaud Frisch criaram, no final de 2011, uma casa noturna na Rua Montmartre, em Paris: o Club Silencio, complexo que inclui ainda sala de shows, restaurante, cinema e biblioteca.

Em 2006, é lançado seu último longa-metragem de ficção, “Império dos Sonhos”, produção ainda mais experimental e radical, rodada ao longo de dois anos. O filme radicaliza ideias que ele já havia desenvolvido em “A Estrada Perdida” e “Cidade dos Sonhos”, como o fim das fronteiras entre realidade e sonho.

Legado

Um dos diretores mais cultuados pelos cinéfilos, Lynch transcende a sétima arte. É um inquieto artista multimídia com atuação nas artes plásticas, fotografia, escultura, desenho, música e até nos quadrinhos (“O Cão Mais Raivoso do Mundo”). Boa parte de seus trabalhos foge do realismo, ao apresentar uma série de eventos aleatórios que fazem – aparentemente – pouco sentido.

Para ele, ao representar a vida, os filmes devem ser complicados, e, em alguns casos, inexplicáveis. Por isso, dificilmente explica o enredo de suas histórias; cabe ao próprio espectador estabelecer sentido e significação para aquilo que vê.

“Imagine um livro que, quando publicado, faz muito sucesso, deixando seus leitores intrigados e com muitas dúvidas, mas sem conseguir respondê-las, pois seu autor faleceu antes da primeira edição ser vendida”, propôs David Lynch certa vez ao comentar “Cidade dos Sonhos“. “É assim que vejo meu filme, como uma caixa cujo segredo está na chave de cada um, que irá abri-la e desvendá-la a seu modo”.

Últimos capítulos

Lynch esteve pela primeira vez no Brasil em 2008, para divulgar seu livro “Em Águas Profundas – Criatividade e Meditação”, no qual fala a respeito do seu compromisso de três décadas com a Meditação Transcendental e da diferença que isso fez em seu processo criativo. Na época, ele aproveitou para participar do programa de entrevistas Roda Vida, na TV Cultura.

Em 2020, recebeu um tardio Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, prêmio entregue por seus colaboradores (e velhos amigos) Kyle MacLachlan, Laura Dern e Isabella Rossellini. E, em seu último trabalho no cinema, fez uma participação antológica como ator em “Os Fabelmans” (2022), drama semi-autobiográfico de Steven Spielberg no qual vive ninguém menos que o lendário diretor John Ford (de “Rastros de Ódio”).

Ao longo de sua brilhante carreira, Lynch rompeu as convenções de Hollywood e virou, à la Federico Fellini, adjetivo – lynchiano. Cuja definição no dicionário poderia ser: sinônimo de desconstrução narrativa, ausência de lógica ou explicações, personagens à margem e imagens perturbadoras, que entraram para o subconsciente dos fãs de cinema.

Saiba mais sobre o diretor:

Espaço pra sonhar – Livro escrito por Lynch em parceria com Kristine McKenna sobre a vida pessoal e criativa do visionário cineasta, por meio de suas próprias palavras e do olhar de colegas de trabalho, família e amigos. Editora BestSeller.



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