Sucesso nos cinemas, com mais de 600 mil espectadores, a cinebiografia de Ney Matogrosso pode ser vista agora na Netflix. Ousado e fiel ao espírito libertário do cantor, “Homem com H” tem como ponto alto a caracterização de Jesuíta Barbosa.
Um dos melhores atores de sua geração, Barbosa se entrega de corpo e alma, emulando cada expressão e trejeitos do cantor que desafiou as convenções sociais no Brasil, a partir dos anos 1970. Antes de brilhar na novela “Pantanal” (2022), Barbosa estrelou filmes autorais como “Tatuagem” (2013) e “Praia do Futuro” (2014), sempre atraído por personagens desajustados ou de sexualidade à flor da pele.
Para viver Ney Matogrosso, o ator perdeu 12 kilos — ganhando mais massa e definição muscular — e contou com a ajuda de Roberto Audio, na preparação de elenco; do bailarino e coreógrafo Cristian Duarte, nas coreografias e expressão corporal no palco; da figurinista Gabriela Amarra, na reconstituição dos looks clássicos do cantor; e do maquiador mexicano Martín Macías Trujillo (@martinmaciastrujillo), um mestre na caracterização, com trabalhos como a transformação de Júlio Andrade na série “Betinho – No Fio da Navalha”.
Caracterização que envolve não só a aparência física do personagem mas sua identidade visual. Nesse processo, a maquiagem e cabelo são a base de uma grande transformação que envolve, no caso de Jesuíta em “Homem com H”, cinco perucas (tecidas fio a fio por Trujillo), pelos colados no peito do ator (também por Trujillo) e o uso de uma prótese dentária para reproduzir os dentes separados do músico.

Barbosa ainda enfrentou o desafio de cantar, com a própria voz, “Rosa de Hiroshima”, clássico da primeira banda de Ney, os Secos & Molhados, grupo de rock que ousou nos anos 1970 ao usar maquiagem inspirada no teatro Kabuki japonês (pouco antes da banda Kiss). As outras 16 músicas que compõem a trilha são apresentadas em suas versões originais, na voz de Ney, que continua em plena atividade, aos 83 anos.
Canções que servem de fio condutor para a narrativa, que vai da infância do cantor, nos anos 1940, passa pela efervescência cultural e revolução nos costumes dos anos 1970, a epidemia da Aids no início dos 1990, e vai até uma de suas apresentações, em 2024. Algumas das melhores sequências do filme são costuradas por clássicos da MPB, como “Rosa de Hiroshima”, “Postal de Amor”, “O Mundo é um Moinho” e o forró “Homem com H”, que serve de título e no filme ilustra a força pansexual do artista.
A direção e roteiro de “Homem com H” ficaram a cargo de Esmir Filho (“Os Famosos e os Duendes da Morte”, série “Boca a Boca”), que segue, à sua maneira, a cartilha de outras cinebiografias musicais brasileiras — por si só, um subgênero do nosso cinema — , como “Tim Maia” (2014) e “Elis” (2016), que condensam, em pouco mais de duas horas, décadas de eventos e experiências de seus biografados, tanto no âmbito pessoal quanto no profissional.
Mesmo em busca de um público maior, Esmir não deixa de lado a sexualidade de seu biografado, em oposição à repressão, primeiro imposta pelo pai militar (interpretado por Rômulo Braga) e depois pela ditadura militar, em imagens que exploram os movimentos sensuais do cantor no palco — e fora dele, em cenas de sexo estilizadas que exprimem o caráter libertário de Ney, que desafiava preconceitos e recusava (como faz até hoje) rótulos sociais.
Ao contrário de cinebiografias, como “Bohemian Rhapsody” (2018) e “Rocketman” (2019), em que o desejo e a sexualidade de músicos famosos são carregados de culpa, não há espaço para caretice e vergonha em “Homem com H”. O que vai ficar mesmo na memória do espectador é a eletrizante presença de palco de Ney Matogrosso, encarnada à perfeição pelo talentoso Jesuíta Barbosa.
CURIOSIDADES:
- A cinebiografia contou com o aval de Ney Matogrosso, que colaborou com o roteiro e leu 12 versões do projeto.
- No filme, os relacionamentos mais significativos do músico são com Cazuza (interpretado por Jullio Reis) e o médico Marco De Maria (papel de Bruno Montaleone), com quem foi casado durante 13 anos.
- A figurinista Gabriella Marra preparou 90 figurinos, em média, para Jesuíta usar. E, como o ator chegou à forma física semelhante a de Ney, ele pôde usar peças originais do cantor.
- A cantora Céu faz uma participação especial, como a atriz e vedete Elvira Pagã (1920-2003).
- Numa das primeiras cenas, Esmir Filho evoca uma de suas influências, a cineasta francesa Claire Denis, recriando uma das sequências de seu “Bom Trabalho” (Beau Travail, 1999), na qual jovens militares se exercitam em grupo.
Pesquisa e texto: Eduardo Lucena