Se existem duas coisas que mais amo no mundo da arte são: CINEMA e MÚSICA. Meu estilo favorito é o Blues e minha atriz favorita é Viola Davis… sou a pessoa mais suspeita para recomendar esse filme… Então, não precisam acreditar em mim! Ainda bem que venho aqui para falar sobre o processo da maquiagem e não para fazer minha crítica ao filme, senão a nota seria maior que 10! (Aprendi, trabalhando no departamento de marketing de uma empresa que comercializava filmes – vulgo 2001 Vídeo para quem conhece – que para recomendar um filme, basta apesentar os fatos a respeito da obra, sem a necessidade de colocar o gosto pessoal. Então, vamos aqui aos fatos).
O filme traz Chadwick Boseman como coadjuvante numa despedida e Denzel Washinton como produtor executivo. (Vamos lembrar de “Fences” – Um Limite Entre Nós, que traz o mesmo no elenco, produção e direção).
Como de costume, venho aqui para defender o departamento de maquiagem (cabelo, caracterização, efeitos especiais, e por aí vai) e lembrar que ele é fundamental para a construção do personagem. É uma tecla que não canso de bater.
O tema “construção de personagem” é algo especial para mim pois quando falo sobre isso, é um do poucos momentos em que sinto que as palavras maquiagem e psicologia se contectam.
Vamos ao filme…
A força de Ma Raney é transmitida de todas as formas possíveis ao espectador: A alma emprestada por Viola através de seu olhar, postura e entonação da voz, o suor e a maquiagem borrada propositalmente pelo responsável pela caracterização, a característica do cabelo que denuncia seu poder, o figurino milimetricamente pensado para as curvas de seu corpo e outras dezenas de detalhes que hipnotizam nosso olhar.
A lendária mãe do Blues está no ano de 1927 em Chicago para gravar um disco e como disse Viola em uma entrevista, “She owned it”… “Chegava chegando”, como dizemos por aqui. Uma mulher empoderada em plenos anos 20 é de encher nosso coração de orgulho. Eu, que sou mulher, e me considero feminista, vibrei a cada levantada de queixo, cada batida de pé e a cada aumento de tom de voz que ela deu, deixando todos os homens à sua volta aos seus pés. Uma personalidade inspiradora!
ENFIM, A TRANSFORMAÇÃO DE VIOLA EM MA RAINEY
Viola Davis fez o possível para alcançar o peso de Ma Rainey (130 KG), mas chegou no limite aos 90 kg e teve que usar um “fat-suit” (O fat suit é um efeito para engordar que fica abaixo da roupa e por isso é administrado pelo departamento de figurino, diferentemente de uma prótese de maquiagem FX, onde a pele é evidente e há a necessidade de criar peças de silicone para substituí-la).
Em uma entrevista para Zeba Blay (Huffpost), Viola enfatiza a importância da caracterização para encarnar na personagem. Ela fala que materializar as características desses elementos foi a melhor escolha. O mais legal de tudo isso é que ela traz em várias entrevistas referências positivas de mulheres grandes, gordas, empoderadas e sexie,s que influenciaram sua vida, e o quanto isso ajudou a construir essa personagem. Fala sobre a tia Joyce, que era a primeira mulher mais linda que viu na vida, e ela pesava mais de 130kg. Fala sobre sua postura, o jeito empoderado de se vestir, sua beleza, seu sex appel, e a maneira como ela caminhava, rebolando e cheia de pose. Ela disse que essa maneira de enxergar fez toda a diferença. Porque Ma Rainey era empoderada. E ela não trabalhou contra o peso e sim a favor dele.
“Quando ela chega, tudo pára” e isso tem muito a ver com o que sua estética corporal representa. “Eu não queria que ela fosse apologética com isso… Eu até descobri que sabia andar de salto, mas só quando estava incorporada de Ma Rainey… sou péssima andando de salto na vida real.”
Tudo isso somados aos dentes de ouro, aquela maquiagem oleosa e pesada (totalmente proposital), os cílios de boneca…
Ela diz: Na pré-produção de um filme, quando fazemos a prova de figurino e maquiagem, vamos construindo com os designers e também damos nossa opinião. É uma construção em conjunto. E, naquela época nos EUA, era muito comum as mulheres usarem peruca de crina de cavalo e a maquiagem não era lá a mais bem feita… Fora as luzes e os lugares onde ela costumava cantar e a forma pitoresca de se apresentar que era uma estratégia para entreter o público.
E continua: Então resolvemos “bagunçar” a maquiagem em comparação ao que fizemos bonitinho nas primeiras provas. Somamos muito suor, suor o tempo todo, porque em todas as pesquisas encontrávamos esta característica. E o meu grande medo – e desafio – era somar todas essas características à personalidade empoderada dela enaltecendo sua personalidade que empunha respeito.
Se eu não conseguisse chegar nesse lugar, não me perdoaria. Eu tinha que honrar essa mulher. Toda sua complexidade. Isso não significa que ela não tinha defeitos ou que não pudesse em alguns momentos ser engraçada, mas… ela tinha algo muito mais profundo dentro dela. Eu não queria padroniza-la…
UMA ENTREVISTA COM A EQUIPE DE MAQUIAGEM
(‘Ma Rainey’ Hair & Makeup Designers On Capturing Trailblazer’s Essence – Deadline)
Os maquiadores e hair stylists Mia Neal, Sergio Lopez Rivera e Matiki Anoff trabalharam na caracterização de Viola o filme captando sua essência e todas as dinâmicas raciais daquela época.
A equipe precisou mergulhar numa pesquisa aprofundada em registros de pessoas da cidade de Chicago nos anos 20 (não só a para construir as características da protagonista como todos os coadjuvantes e elenco de apoio).
O especialista em cabelo (hair department head) Neal e o maquiador pessoal de Viola, o Sergio Lopez Rivera, mergulharam em registros dos anos 20, estudaram suas características psicológicas e suas experiências como uma artista negra vivendo nos anos 20.
Enquanto Sergio Lopez Rivera buscava a maquiagem pesada e oleosa para que Rainey usasse como armadura, Neal construía perucas, incluindo as feitas de crina de cavalo, além de contruibuírem com a a maquiadora que assinava o filme – a mekeup department head Matiki Anoff – para os looks dos coadjuvantes, componentes da banda, figuração e elenco de apoio.
Em uma entrevista para a Deadline eles falam sobre o processo de trazer a peça para o cinema, o curto tempo para a pré-produção (viram só? Não somos só nós que sofremos com isso aqui no Brasil!).
Sergio Lopez Rivera fala que um dos maiores desafios foi na busca de fotos para usar como referências. Ele não conseguia captar o que ela sentia com seus looks através dos registros que encontrava.
Seus questionamentos iam: Quem era essa mulher? E como era o mundo dela? Qual era o grau de liberdade que ela alcançava, no sentido de direitos das mulheres? Como vivia numa mulher Afro americana neste local e época? O que estava ou não ao seu alcance? Quais as limitações? Sua educação? Suas características psicológicas?
Estamos falando sobre uma mulher negra, gorda e gay nos anos 20, então tem um contexto psicológico importante a ser estudado, para nos fornecer material suficiente para criar seu aspecto visual.
Mia Neal (hair dept. head) conta que recebeu a proposta duas semanas antes do início das filmagens. Ela diz: “Quando ficamos sabendo a respeito da quantidade de pessoas que estavam na figuração, eu sabia que ia ter que tirar da cartola, tipo, umas 100 perucas para garantir, porque é difícil sabermos a esse ponto quem são essas pessoas e não há tempo de testá-las com antecedência.
Então, durante essas duas semanas eu construía as perucas dos principais a também tinha que dar conta dessas 100 perucas da figuração. “Me apoiei muito na figurinista Ann Roth e na pesquisa dela, além da minha experiência com teatro, mas, ainda assim, as limitações eram muitas e é difícil saber para que lado seguir.”
Ann tem uma equipe de pesquisa e encontraram uma informação importante. Que a peruca que ela costumava usar em suas performances era feita com crina de cavalo. Outro desafio é que existem apenas uma meia dúzia de fotos oficiais no mundo sobre Ma Rainey. Então você tem que se prender com todas as forças nesse pequenos detalhes que encontra e tentar ser o mais fiel possível a esses registros.
Eu e Ann concordamos sobre ter a peruca de crina de cavalo. Encomendei da Europa. Então, imagina, eu não fazia ideia do que ia chegar em minhas mãos… E pasmen…estava cheia de lêndeas, afinal havia sido cortado literalmente sido cortado de um cavalo de verdade. Ao menos não estavam vivas pois claramente estava guardada sabe lá Deus desde quando, ainda bem!
Era uma “lace” tão pequena que tive que adaptar, costurar e foi a primeira vez que fiz isso com luvas por causa das lêndeas. No fim das contas eu fervi a peruca até que estivesse totalmente higienizada e descobri que isso ajudava a amaciá-las, o que foi ótimo! Acabei descobrindo que ela devia usá-las justamente pelo fato de lacearem com o calor. Nos anos 20 não era fácil encontrar esse tipo de serviço em qualquer esquina, então o cabelo dela estava sempre pronto.
Além desta, tinham as outras perucas com aquelas ondulações, também as trouxe da Europa. Um item importante que lhe dava classe e estatura na sociedade. Em determinado momento, ela se torna uma mulher poderosa, com dinheiro, podendo bancar isso. Então as perucas acabam ajudando a contar essa história, as questões psicológicas por trás do look.
O QUE TERÁ ACONTECIDO À BABY JANE
SERGIO LOPEZ RIVERA
As características de Bette Davis no grande clássico Whatever Happened to Baby Jane (O Que Terá Acontecido à Baby Jane) aparecerem nos primeiros dias de filmagem. A maquiagem borrada e derretida sempre foi a ideia, eu pensava passar a impressão que ela mesma fez. Mas no segundo dia, Viola estava olhando para o espelho e teve esse estalo. Que referência! E me assusta saber que muitas pessoas nem sabem que filme é esse! Me deixa muito triste… E isso mostrou o quanto ela é destemida, considerando que estamos falando de uma celebridade de Hollywood. Ela fazia questão de que nós, tanto maquiagem quando figurino não estivéssemos preocupados em deixá-la bonita e sim fiel à personagem.
Então a partir disso, desenhei a maquiagem com liberdade usando produtos “clown”(à base de óleo), que derretessem facilmente. Foi uma liberdade que nunca senti na indústria… criamos, testamos, sem preocupar-se com o ego do ator. Foi um raro momento em que exerci minha criatividade com liberdade.
Outros elementos que ajudaram a trazer à tona a personagem foram os dentes de ouro, apagando aqueles lindos dentes brancos e aquele lindo sorriso de Viola. O outro foi apagar as sobrancelhas, fazendo aquela linha fina acima do seu desenho natural como era feito na época.
E os olhos: aquele pretão brilhante que usavam na época com cortiça queimada, gordura e vaselina nas linhas do olho. Bem anos 20, principalmente para quem não tinha acesso aos limitados cosméticos da alta sociedade.
Enfim tudo isso eu tinha que fazer parecer que ela mesma fez e que ela não era muito boa disso. Adicione a isso uma atmosfera de mal humor, a pessoa que não está num bom dia, está um calor do cão e tudo isso ao mesmo tempo.
DEADLINE: E A CONTINUIDADE COM TODO ESSE SUOR?
Matiki Anoff: O Sergio cuidou de cada passo com Viola para que pudéssemos dar atenção ao restante do elenco. A ação do suor realmente existe para a protagonista e isso acontecia naturalmente pois o cenário não tinha ar condicionado. Mas o suor dela tinha que ser mais evidente. Então tínhamos que ter o cuidado em dosar tudo isso, quem suava mais e quanto de suor cada cena pedia.
Então, toda vez que cortava a câmera, lá íamos nós para manter o aspecto de suor. Porque se você vacila em uma só cena, você coloca tudo a perder.
Além de tudo isso, tínhamos que ter o cuidado com a peruca, figurino. Alguns dos materiais para criar o aspecto de suor é à base de glicerina, então imagina o cuidado que não tínhamos que ter!
ANOFF
Considero todos os atores importantes. Todo mundo acaba sendo principal. Além disso, temos o desafio das diferenças da moda entre as épocas. Muitas mulheres hoje em dia têm microblading, unhas postiças. As sobrancelhas era super finas naquela época. TGrabalhamos com mais de 600 figurantes, então imagine! Toca a gente pedir luvar para o figurino cobrir as unhas de gel, equipe, vamos cobrir tatuagens… e um dos principais para ajudar tinha piercing, o que não existia naquela época, enfim… Todos esses pequenos grande detalhes que as pessoas nem imaginam são essenciais para a autenticidade.
NEAL:
Um hábito muito interessante, que me chamou a atenção na ANN ROTH é que ela pede para cada figurante caminhar até ela sentir quem é seu personagem. Ela costumava dizer: Essa parece que acabou de chegar do mercado, dê uma bolsa pra ela”. Ela entra nessa história até ela sentir que criou essa pessoa no mundo real. Ela faz isso com cada figurante, eu nunca tinha presenciado isso, nesse nível.
LOPEZ RIVERA
É um processo inacreditável. De verdade. Eu estou nesse ramo há 30 anos e ainda assim me deixou boquiaberto. Ela teve esse cuidado com cada um, mesmo que sabemos que muitos deles nem iam aparecer.
NEAL
Então quando você vê a figurinista fazendo isso, você faz também. Você cria uma historinha para cada um.
Um grande desafio para a maquiagem é garantir a vivacidade da cor da cena quando há no elenco negros e brancos. Muitas vezes a pele negra fica acizentada ou os brancos pálidos, por exemplo. O diretor de fotografia conseguiu afinar a luz de uma forma tão magistral, sem nenhum defeito.
LOPEZ-RIVERA
É muito importantes sabermos como nossa maquiagem será fotografada, é através dela que fazemos os devidos ajustes e fazer esse filme foi algo muito especial. A sinergia da equipe dava um sentimento especial, foi muito bonito de se ver.
Meu objetivo é trazer emoção através da maquiagem, mas senti isso com todos os departamentos.