Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011, “Incêndios” voltou aos cinemas brasileiros, 15 anos após seu lançamento, agora remasterizado em 4k. O aclamado drama franco-canadense continua em cartaz no Reserva Cultural (Av. Paulista, 900), em sessões únicas durante a semana.
Adaptação da peça teatral homônima escrita pelo libanês Wajdi Mouawad – já encenada no Brasil com Marieta Severo no Teatro FAAP, em 2014 –, o filme discute os trágicos efeitos da guerra sobre a trajetória humana por meio da história de uma canadense à procura de respostas para o passado de sua mãe no Oriente Médio. Os caminhos da mãe e da filha, passado e presente, irão se cruzar e trazer revelações desconcertantes pelo caminho, deixando no espectador um nó na garganta difícil de esquecer, assim como um desfechos mais impactantes da história do cinema recente.
Em setembro de 2011, o cineasta Denis Villeneuve, até então pouco conhecido no Brasil, concedeu por e-mail entrevista exclusiva para o guia de lançamentos da saudosa rede de videolocadoras 2001 Vídeo. Hoje consagrado na seara da ficção-científica, com filmes como “A Chegada” (2016), “Blade Runner 2046” (2017) e as duas partes do épico “Duna” (2021/2024), o cineasta se prepara para dirigir o reboot da franquia 007 sem Daniel Craig.
Confira a seguir a entrevista na íntegra.
FILHOS DA GUERRA

2001: Quem assiste ao filme “Incêndios” dificilmente imagina que foi baseado em uma peça teatral. Como você a adaptou para a linguagem do cinema e, em especial, para uma narrativa que valoriza tanto os silêncios e a construção do mistério?
Denis Villeneuve: É importante salientar que o autor da peça original, Wajdi Mouawad, me deixou totalmente livre para adaptar a peça. Era importante para ele que eu fosse inteiramente responsável pelo filme. Talvez seja uma das razões pelas quais tive que me aprofundar no território do cinema e afastar-me o máximo possível do teatro para apropriar-me do material. Idealmente, eu teria gostado de fazer um filme totalmente silencioso para homenagear a poesia da peça original. Mas teria necessitado de muito mais dinheiro!
Caro demais. O texto teatral é um poema verdadeiramente magnífico e pulsante, e que dura mais de três horas e meia. Para adaptá-lo, precisei – se posso dizer assim – “queimá-lo” para conservar somente seu esqueleto: os personagens principais e a estrutura dramática que Wajdi imaginara. Escolhi o ângulo da família. E escrevi o roteiro tentando traduzir as palavras dele em imagens, com o menor número possível de diálogos. O filme é, assim, muito diferente da peça, mas espero que seja o mais fiel possível a ela.
A peça é baseada em uma história verídica? Ou você conheceu pessoas reais que viveram experiências como as da família Marwan?
A peça é inspirada em alguns fatos-chave da guerra civil libanesa, mas sobretudo a respeito de Souha Béchara. Ainda jovem, ela tentou matar Antoine Lahad, chefe do Exército do Sul-Libanês, aliado de Israel. Foi detida e torturada no presídio de Khiam durante 10 anos. A resistência e o comprometimento político de Souha inspiraram Wajdi, que havia conhecido ela durante a infância.
É importante enfatizar que houve uma grande transposição poética entre a inspiração inicial, que vem do real e que é Souha Béchara, e o personagem fictício de Nawal Marwan. “Incêndios” é uma ficção, o personagem de Nawal e as provações que ela enfrenta foram inventadas. De minha parte, desconheço totalmente a guerra, mas conheço bem os silêncios que embutem a raiva nas famílias, geração após geração. Posso afirmar que“Incêndios” é, certamente, meu filme mais íntimo e pessoal.
A trama é construída gradativamente, sem explicar muito o contexto geopolítico ou citar onde se passa a ação. Explique essa decisão.
Na peça, a ação se desenrola numa região do Oriente Médio que lembra o Líbano, sem jamais mencioná-lo, e com nomes de lugares inventados. O filme segue o mesmo caminho, de modo a contar a história com toda a liberdade necessária e evitar, portanto, a tomada de posição no conflito, falando dos ciclos de ódio e violência, sem deles participar.
Esse conflito libanês é de uma complexidade muito grande para poder comentá-lo por meio de uma ficção por si só já complicada. Precisaria rodar um documentário de 20 horas para conseguir apresentar um pouquinho da verdade sobre essa guerra. Para mim, um cineasta canadense, foi uma forma de respeitar a história do Líbano. Há muitas verdades que se chocam a respeito desse conflito e eu não poderia escolher uma delas como única. Eu precisava permanecer neutro.

Atos de violência em nome de ideologias e das circunstâncias do tempo histórico são, infelizmente, atemporais e cada vez mais frequentes no mundo contemporâneo. Por isso a importância de escavar e investigar o passado para atingir a paz no presente, como faz Jeanne, personagem da filha?
Na minha opinião, o filme trata mais da família do que da guerra. É uma metáfora que trata dos ciclos de violência. Para afastar raivas enraizadas no passado que nos cegam, nos bloqueiam e nos impedem de sermos adultos, é preciso voltar no tempo, ao início dos problemas, e quebrar os silêncios.
A violência no filme é impactante, sem ser, contudo, explícita. Foi uma preocupação evitar a espetacularização do tema?
Sim, absolutamente. Dirigir cenas de violência é uma responsabilidade. Quis aproximar-me da guerra com humildade e abracei o ponto de vista das vítimas. Tentei me aproximar da violência mostrando sua brutalidade e feiúra, mas conservando a força do impacto cinematográfico necessário para o bom desenrolar da história.
Foi difícil convencer a banda Radiohead a ceder os direitos de duas de suas canções [“You and Whose Army?” e “Like Spinning Plates”] para a produção?
Para que o Radiohead aceitasse ceder os direitos, foi necessário que o grupo assistisse ao filme e o aprovasse. Foram os primeiros a ver “Incêndios”. No entanto, não sei quem da banda o viu. Foi um grande alívio quando me ligaram para dizer que aceitariam ceder os direitos. Eu não tinha um plano B. As duas músicas faziam parte do projeto desde o primeiro dia da roteirização do filme. O fato de aceitarem a proposta foi também uma honra. São criadores por quem tenho grande respeito.
Entrevista realizada por Eduardo Lucena para a edição 108 da revista 2001 (setembro de 2011)



